quinta-feira, 21 de abril de 2011

Reflexão


a gente se acostuma,
a morar em apartamento de fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor. e porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. e porque não olha para fora, logo se acostuma e não abrir de todas cortinas. e porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. e, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão. a gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora, a tomar café correndo porque está atrasado, a ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo, a comer sanduíche porque não dá para almoçar, a sair do trabalho porque já é noite, a cochilar no ônibus porque está cansado, a deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. a gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. e aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. e aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. e não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração. a gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”. a sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta, a ser ignorado quando precisa tanto ser visto. a gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita, e a lutar para ganhar com que pagar, e a ganhar menos do que precisa, a fazer fila para pagar, a pagar mais do que as coisas valem, a saber que cada vez pagará mais, a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. a gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes, a abrir as revistas e ler artigos, a ligar a televisão e assistir comerciais, a ir ao cinema e engolir publicidade. com tantos costumes a gente acaba se acostumando com tudo, apartir da poluição, a tristeza, angústia, ao tédio, ao amor, ao ódio, à raiva. enfim, a gente acostuma com a vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário